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Edson Flávio Santos

É cacerense, doutor em Estudos Literários, pesquisador e docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL/UNEMAT. É autor de Aldrava (2020) e Utopias e resistências na obra de Pedro Casaldáliga: escritos escolhidos (2021). Escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia.

A fé que se fez verso: Poesia e religiosidade em Natalino Ferreira Mendes

A oração rompe os lábios
Para fazer ligação
Do tempo com a eternidade
 

(Anhuma do Pantanal, 1993, p. 46)

Poesia é palavra que testemunha a fé. No caso de Natalino Ferreira Mendes uma fé que se revela na crença ao sagrado. A forma poética da oração religiosa é tão antiga quanto a própria poética e nem por isso deixa de guardar relações importantes entre si. O eu-lírico crê na existência de Deus e intenta conectar-se com esse ser transcendente através de gestos de reconhecimento e honrarias.
Segundo Hilda Magalhães (2001, p. 313) um determinado período da literatura produzida em Mato Grosso, ainda que “caudatária do parnasianismo e do romantismo” já produzia, ao seu modo, “alguma estética criadora”. Nesse sentido, Natalino Ferreira Mendes, com seus dois livros de poemas Anhuma do Pantanal (1993) e Pássaro vim-vim (2010), de acordo com nossas análises iniciais, revela-se um autor multitemático como que percebendo todos os influxos da primeira metade do Século XX. Não há quem não se debruce sobre mais de uma centena de poemas e não chegue à conclusão de que a cidade de Cáceres, sua Terra, é o grande motivo condutor de sua produção. Através de vivências, construiu-se de robusta formação religiosa. Seus ideais humanos se coadunam com os cristãos. Ambos são importantes e se destacam na poética, constituindo a “situação-gênese” da poesia. Utilizamos o termo cunhado pelo crítico Emil Staiger na obra Conceitos e Fundamentos da Poética (1997), que afirma não ser apenas o componente estético que imprime beleza à poesia, mas, principalmente, a força que a provocou e que essa poesia carrega dentro de si. Uma força que salta dos versos do poema “Arte”:

 

Arte... gotas do sobrenatural vazadas
No coração do homem...
Rosa cujas raízes têm no infinito
A sua fonte de energia...
Mística pérola de luz oculta
No coração do homem...
Incentivo bendito ao espiritualismo.
Certidão da existência da luz de Deus
Junto ao nosso corpo material...
Atração do pensamento humano
Para a região sem mancha da beleza. 

(Anhuma do Pantanal, 1993, p. 47)


Nos versos acima é possível compreender a crença do eu-lírico em uma dependência sobrenatural da práxis criadora e da arte como dádiva entregue aos homens pelo beneplácito de Deus. É a impotência humana que necessita do auxílio divino, como vemos em “Inspiração”:


Inspiração divina que me desce
Do céu, nas asas da oração ardente,
Vem afirmar na minha mente em prece
A luz da fé que já minha alma sente.

Vejo que a tudo Deus está presente:
- No alvorecer, na tarde que esmaece...
Na paz, na solidão... na dor do crente...
Na férvida oração do que padece.

Sem ti, Senhor, o homem, só, perece
Correndo atrás da glória fementida,
O céu, a alma... o ser humano esquece.

Por fim, cansado e presa de receios,
Volta-se o homem à sua fé perdida,
Pedindo a Deus um termo aos seus anseios.

 (Anhuma do Pantanal, 1993, p. 62)

Percebemos no soneto/oração acima o gesto poético da onipotência, da onisciência e da onipresença de Deus que a tudo está presente. O ser divino que socorre o homem quando este encontra-se cansado e sem fé.
Na chamada Economia da Salvação, a tradição cristã acredita que Deus enviou seu filho Jesus Cristo para salvar a humanidade que já não acreditava mais em Deus e estava fadada a “perder” a salvação eterna. Esta crença também aparece nos últimos versos de Rumo perdido: “Senhor! Salva-nos que perecemos./ Enchemo-nos de ciência e te abandonamos /E tu, como sempre, respeitoso /Da nossa liberdade, /Nos deixas seguir à discrição os ventos. /Urge que acordemos /Em nosso coração /A fé que adormeceu... /- Salva-nos, Senhor!” (Anhuma do Pantanal, 1993, p. 88).
Novamente encontramos o eu-lírico em prece que, atualizado, reconhece o desvio de rota e busca endireitar-se, mas não consegue com suas próprias forças. A imagem do homem fraco e dependente do divino acompanha a história da humanidade e aparece reiteradas vezes na literatura desde os gregos até os dias de hoje.
A crença do autor confunde-se com sua admiração e carinho pela cidade. O homem citadino e cristão recorre aos lugares de memória (Pierre Nora, 1984) para, também neles, reforçar a intervenção e a ação divina: Vila Maria, consagrada a São Luiz, /Teve na Providência /“A guarda soberana”. /De todas as direções /Do Paraguai e afluentes,/Mãos invisíveis transportaram /Camalotes, capim, aguapés /E mais outros vegetais”. (Anhuma do Pantanal, 1993, p. 33)
Os versos acima, do poema “Tapagem (Episódio da Guerra do Paraguai)” atribui milagrosamente a um fenômeno natural a ação sobrenatural da “providência divina”. O ser soberano que cuida de todo o povo cacerense! Cáceres foi erigida sobre a consagração de um santo: São Luiz e, tendo-o como seu padroeiro, é também mote de diversos versos. Por eles, essa “consagração” garante à cidade toda sorte de bençãos, pois: “Assim, a Providência, /Que o mundo inteiro preside, /Salvou Vila Maria /Das mãos potentes de Lopes” (idem, p. 34)
Cáceres, a contar de sua fundação, recebeu de Portugal grande influência. O cristianismo era a religião oficial da coroa e por conseguinte acaba sendo a religião oficial da cidade. Os poderes (executivos, legislativos e eclesiásticos) interagiam de modo a intensificar a atuação um do outro como o ocorrido quando a assinatura da Lei Áurea em que: “A Câmara Municipal se põe à frente /do entusiasmo popular, /e faz cantar, na igreja Matriz, /um Te Deum, em ação de graças /por tão memorável feito, /que chamou de “redenção gloriosa” /da gente escravizada”. (Pássaro vim-vim, 2010, p. 56)
Aqui encontramos o poder público que, imperativamente, “faz cantar, na igreja Matriz” uma canção/oração cristã que remonta aos primeiros séculos da Era Cristã. Entoada em ocasiões solenes temos nesse gesto a reafirmação da religião católica amparada pelo poder local, e vice-versa, que expressa toda fé de um povo. Não nos esqueçamos que Natalino Ferreira Mendes, por trinta anos, exerceu cargos importantes na esfera do poder municipal e seus versos denotam que, para ele, seu caráter cristão não se dissocia de sua atuação na vida social e pública. A forte presença da igreja católica, seus símbolos e nomeações reforçavam os ideais de crença religiosa: “Monumento de fé /do povo cacerense /a catedral de São Luiz /exprime, /na sua imponência /e nas arquitetônicas linhas,/o arrojo e a perseverança /dos habitantes desta terra”. (idem, p. 66)
A Catedral de São Luiz é, sem dúvida, o maior monumento da cidade. Inspirada na Catedral de Notre Dame, de Paris, demorou quase cinquenta anos para ser construída. Seus traços arquitetônicos chamam atenção pelo estilo neogótico empregado em suas fachadas, acabamentos internos e vitrais. 
O eu-lírico, assim, expressa o sentimento de pertencimento à cidade que se mescla com o sentimento de fé, não apenas individual, mas que se estende para todo o povo cacerense. Um símbolo que une, pela fé, toda uma cidade.
À guisa de concluir o tema que provocou a escrita deste ensaio, temos em Natalino Ferreira Mendes uma poesia que pode ser entendida como uma tarefa de dar sentido à vida do poeta, às suas crenças, à percepção sobre a cidade e valores morais de um tempo. 
Afinal se “o erigir da habitação humana ainda depende do poder da palavra: é graças à palavra em seu poder nominativo que se pode alcançar a obra do poeta” (NUNES, 2011, p.149). No autor passarinho encontramos a palavra não apenas como exercício de expressão literária, mas como uma práxis cristã, fazendo com que devoção e práxis literárias se coadunem.  

 

REFERÊNCIAS 
MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. História da literatura de Mato-Grosso: Século XX. Cuiabá: Unicen publicações, 2001.
MENDES, Natalino Ferreira. Anhuma do Pantanal: poesia da terra, 1993.
MENDES, Natalino. Pássaro vim-vim: poesia da terra. Cáceres: Ed. Unemat, 2010.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. 
NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1997.
 

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