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Joel Rufino dos Santos (1941 – 2015) 
Nasceu em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Estudou História na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, onde foi professor de cursinho pré-vestibular. Além de ser referência no estudo da cultura africana no Brasil, Joel foi ativista político, sendo perseguido pela Ditadura Civil-Militar – viveu até 1973 na Bolívia, quando pôde, enfim, retornar ao Brasil. Algumas de suas obras de destaques são Crônica de indomáveis delírios (1991), Quatro dias de rebelião (2007), Na rota dos tubarões (2008), Bichos da terra tão pequenos (2010) e Claros sussurros de celestes ventos (2012).

TRECHO DO ROMANCE 'CLAROS SUSSURROS DE CELESTES VENTOS' (2012)

1922, dia de Todos os Santos, começo da tarde
Afonso recusa o fígado acebolado com arroz que tanto aprecia. Daí a pouco, soam palmas. A chuva amainou, é agora fina, vaporosa, ao sabor do vento. O louco delira como vela que se apaga. Arlindo e Elisa prolongam o almoço na pequena mesa de pinho, vai ver roçam os pés. Evelina fuma encostada no batente, não podem reprimi-la o irmão nem o pai.
O visitante é um preto distinto, colarinho alto, gravata de seda, u’a mão repousa no castão da bengala, a outra segura uma pasta fina. Depois de levá-lo ao quarto de Afonso, correm espiar pela janela o carro que o trouxe. Não há nenhum.
Afonso interrompe a leitura e o convida a sentar. O visitante aponta com a bengala o colo do enfermo, amontoado de revistas e livros:
— Vejo que tens alguma coisa minha.
— Tenho tudo que publicou. Broquéis está na terceira prateleira da esquerda. Eu o respeito profundamente.
— Essa é uma confissão delicada de que não gosta. Eu, ao
contrário, gosto de tudo o que tu escreves.
— Do que escrevi.
— Não, não, Afonso. Não tens nenhuma doença grave, produzirás ainda muito. Por exemplo, a história da escravidão no Brasil.
— Foi um sonho de moço, não tenho forças nem saber.
— Qual! E teu pai, como está?
— Nas últimas. Você não acha uma peça do destino o pai e o filho se acabando ao mesmo tempo?
O visitante dá uma palmada na coxa. Regula o sorriso:
— Afonso, Afonso!... Sempre me disseram que eras dengoso. Ainda vais me enterrar.
— A loucura de papai é vinte e quatro horas por dia.
— Sei o que é. Minha mulher também enlouqueceu.
— Consta que você a conheceu no cemitério.
— Não te fica bem a ironia.
— Desculpe.
O outro recolhe a bengala:
— Vou chegando. No teu caso, repouso é medicina. Adeus.
— Resquiescat in pace, quer dizer.
— Não, não, no teu estado repouso é medicina. Voltarei amanhã, adeus.
— João! — a voz de Afonso o detém na porta. — Há uma grande diferença entre nós. Tudo o que você quis na vida foi não ser o que é. Eu, ao contrário.

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