Lorenzo Falcão
“Nasci inexplicavelmente para ser poeta”, reconhece Lorenzo Falcão na breve biografia que acompanha “mundo cerrado” (assim mesmo sem maiúsculas por opção do autor). “O cerrado é meu lar e a poesia, o meu mundão sem porteira”, conclui o jornalista, que nasceu em Niterói (RJ), mas cresceu em Mato Grosso, “entre barrancos, pedras e sombras”, e trabalha há muitos anos como jornalista na área de cultura.
MALA DE VIAGEM
Sim, viajar é mala. É mala uma vez que requer mala. E mala é coisa ruim de se carregar. Tanto, que tem gente mala. Mas viajar é também demais de bom, de tão necessário que é a gente trocar de ares, de geografia, e de se sentir forasteiro. Estraçalhar a rotina que nos persegue em nossa casa e na cidade onde vivemos.
As viagens são muitas e surgem em nossas vidas implorando para serem aproveitadas ao máximo. Viajar é a sobremesa, se o amor for mesmo a refeição da vida, conforme um ditado lá de Singapura.
(“De que lado o senhor costuma usar a mala?”. Pergunta feita por um alfaiate, tempos atrás, aqui mesmo em Cuiabá, enquanto tirava as medidas de um senhor, pra fazer-lhe uma calça alinhada. Mas a mala em questão aqui é outra.)
Se pelo menos quando a gente viajasse as nossas malas fossem que nem essas de filmes e de novelas, que vemos em telinhas e telões, onde não há o menor interesse em passar a ideia de que as malas pesam... Se fosse assim, as viagens seriam infinitamente melhores.
Pior do que a mala, ou igual, no quesito estorvo, é o tempo que você fica esperando as malditas aparecerem naquela esteira dos aeroportos. E o recorde problematizador dessa bagagem é quando ela é extraviada. Aí sim, atingimos ao clímax.
Mala extraviada é acontecimento que já virou até programa de televisão. Particularmente, nunca me aconteceu, mas aconteceu com meu irmão, o Laércio. Ao chegar em Paris, certa vez, deparou-se com o sumiço da sua e, claro, partiu para as reclamações. E quando você perde a mala num país onde não domina a língua, reclamar pela perda é uma complicação muito maior. Você fica a um passo de perder a cabeça, após perder a mala.
Não sei bem como terminou a coisa e acho que não recuperou a mala, tendo que, ao final, ouvir um conselho nada educado do funcionário do aeroporto: “Aprenda melhor a falar o nosso idioma”, disse-lhe o sujeito, esbanjando aquela ‘simpatia’ comum dos franceses.
Já houve um tempo em que eu nutria mais as esperanças de que o destino, numa viagem, me propiciasse viajar agarradinho, com os braços enlaçando algo que assim o exigisse. Essas coisas que adoçam a vida e fazem bem pra nossa autoestima.
Já passei por isso. Já recebi essa distinção do destino algumas vezes, de conviver com uma companhia de viagem que despertasse meus interesses de viajar abraçadinho etc e tal. Mas só bati na trave, nada aconteceu, de fato, além da tagarelice.
A única vez que viajei atracado e abraçadinho, improvisadamente, não foi com alguém. Foi com algo. Um baita vidro de doce de caju em calda, que devia pesar uns 15 quilos e que não pude despachar como bagagem, porque me chegou em mãos já no aeroporto, quando já havia feito o check-in. Quero ver não levar encomenda/presente pra mamãe!!!
E chega. Não vou esticar mais esta crônica de viagem. Ainda tô preparando a lista de encomendas que nós, povos cuiabanos, temos que levar pros cuiabanos desgarrados. Paçoca de pilão, farinha da boa, doces, banana verde frita, pequi, francisquitos, rapaduras e outros badulaques do folclore gastronômico desta terra caliente.
Em meados de dezembro embarco para o Rio de Janeiro, onde vivem meus pais, irmãos e sobrinhos. Mas tenho escala em São Paulo, onde fico com minha filha e genro. São mais de dois mil quilômetros de chão a sobrevoar. Eu e ela, a mala.
Já estou me vendo chateado dentro do avião, naquele exato momento em que a aeromoça diz: “aproveitem o nosso voo”. “Aproveitar como, sua cretina, encaixotado entre o espaço ínfimo das poltronas com 1,90m de estatura!”. É o que me dá vontade de dizer, mas convém ser hipócrita em pelo menos metade de nossas vidas. Por que a sinceridade, já viu né...
Feliz da vida com a viagem, mas ainda tendo que enfrentá-la fisicamente. Com o passar dos anos, novidades indesejadas vão se enfileirando nas reações do nosso corpo. Às vezes fico meio ensurdecido num dos ouvidos. Mas não padeço do mal do medo de viajar de avião e nem gosto dessa música do Belchior. Também não sofro de enjoo e nem careço de dramin. Se não fosse assim, ai meu saco... meu saquinho de vômito.