Marcos Morasck
É professor e escritor, tendo publicado obras voltadas para o público juvenil desde 2007, dentre elas “O diário das eras” e “Pedras da meia-noite”.
NO PRINCÍPIO
— Mandou chamar, senhor?
— Sim. Queria uns conselhos, pois estou com outra ideia para uma criação.
— O senhor anda muito criativo nesses últimos dias, não é mesmo?
— De fato, mas algo ainda me incomoda. É como se a criação ainda não tivesse sido terminada. Falta algo. Acho que esse cenário precisa de um personagem. Alguém que dê ação para que eu escreva uma história bem interessante.
— E qual é a ideia?
— Criarei um homem forte, belo, cheio de habilidades...
— Desculpe interromper, mas não acho boa ideia, senhor.
— Por que não?
— Dirão que o senhor criou um homem idealizado. Que o homem comum, de verdade, não é assim tão perfeito.
— Mas eu queria criar um homem primoroso.
— Apenas advirto-lhe que haverá muitos julgamentos a essa imagem. Podem dizer que o senhor é machista e que esse homem não se adequa a padrões reais.
— Um homem comum, normal, seria melhor?
— Outro conselho: procure evitar a palavra normal. Podem processá-lo por causa disso.
— É sério isso?
— Temo que sim. Mas por que o senhor não cria um homem e uma mulher juntos?
— Por quê?
— Para evitar questionamentos...
— Ó céus! Mas alguém não terá que aparecer primeiro?
— Bem, devo admitir que o senhor tem razão.
— Isso complica o meu trabalho. Escrever já foi mais fácil...
— O futuro não será fácil, senhor.
— O que sugere então?
— Quem sabe simplesmente uma pessoa, um ser. O que acha?
— Pessoa, isso, vou descrever minha criação como sendo apenas uma pessoa. Ela terá a cor...
— Devo alertá-lo que quando se trata de cores e etnias a coisa se complica ainda mais.
— Assim é impossível criar! O que há de errado com a cor das pessoas? Não posso criar uma pessoa sem cor, posso?
— Não, senhor.
— Pois é. E afinal quero que elas cresçam, se multipliquem e se misturem.
— E farão isso, senhor, não tenha dúvidas.
— E ainda assim eu posso ser mal compreendido pela descrição que usar?
— Lamento dizer que sim.
— Juro que não entendo.
— Confesso que eu tampouco.
— E uma criança? Posso inventar uma criança. Sem dizer o gênero e nem a cor, obviamente. Uma criança pequenina, gordinha...
— Talvez esses adjetivos também não caiam bem, senhor.
— Os adjetivos? As pessoas terão alguma alergia a adjetivo no futuro? Como escreverão as histórias sem adjetivos? Sem dizer feio e bonito, forte e fraco. A sociedade será inodora, insípida, sem cores, sem formas e texturas por acaso?
— Não estou certo, senhor.
— Eu só queria escrever uma história, mas você me diz que tudo pode gerar problemas.
— São as críticas, senhor...
— Então não há solução para isso?
— Use metáforas...
— E não vão me crucificar pelo que eu disser?
— Vão inventar um monte de explicações, mas garanto que ninguém chegará a qualquer consenso. Jamais passarão perto da verdade se o senhor não contar.
— Certo, boa ideia. Então escreverei: “No princípio era nada. E não houve nada”.